STJ muda rumo sobre incidência de IPI na revenda de produtos importados

STJ muda rumo sobre incidência de IPI na revenda de produtos importados

Inúmeras são as correntes doutrinárias que defendem a ilegalidade imposta pelo Fisco ao instituir a cobrança do IPI na revenda dos produtos importados que não sofreram qualquer transformação após nacionalizados.

O STJ desde de 2006[i] tem entendimento favorável aos contribuintes. No entanto, em julgados recentes, o ministro Mauro Campbell Marques abriu divergência pela 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça[ii].

Conforme destacado pelo Informativo de Jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça 535, para o mencionado ministro e os demais que o acompanharam, não é ilegal a nova incidência de IPI no momento da saída de produto de procedência estrangeira. Vejamos:

“Não é ilegal a nova incidência de IPI no momento da saída de produto de procedência estrangeira do estabelecimento do importador, após a incidência anterior do tributo no desembaraço aduaneiro.

Seja pela combinação dos arts. 46, II e 51, parágrafo único, do CTN ‑ que compõem o fato gerador do referido imposto ‑, seja pela combinação dos arts. 51, II, do CTN, 4º, I, da Lei 4.502/1964, 79 da MP 2.158-35/2001 e 13 da Lei 11.281/2006 ‑ que definem a sujeição passiva, os produtos importados estão sujeitos a uma nova incidência do IPI quando de sua saída do estabelecimento importador na operação de revenda(…).

Precedentes citados: REsp 1.386.686-SC, Segunda Turma, DJe 24/10/2013 e REsp 1.385.952-SC, Segunda Turma, DJe 11/9/2013. REsp 1.429.656-PR, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, julgado em 11/2/2014.”

O que nos chamou a atenção foi fundamento constante do REsp 1385952, acima reproduzido, em que o fato gerador da exação estaria na combinação dos arts. 46, II e parágrafo único, 51, ambos do CTN.

Não obstante, a imprensa noticiou que em 11 de junho houve a finalização do julgamento dos embargos de divergência opostos por um contribuinte. Os ministros mantiveram o entendimento anterior, no sentido de reconhecer a ilegalidade do IPI incidente na saída do produto importado que não tenha sofrido qualquer nova industrialização.

Mesmo assim, merece certa análise crítica o fundamento utilizado pelo STJ no julgamento do REsp 1385952, conforme veremos.

Fato gerador
O parágrafo único do artigo 51 do Código Tributário Nacional, combinado com o inciso II do artigo 46 do mesmo diploma legal, são os dispositivos legais invocados para fundamentar a qualidade de contribuinte àqueles que não exercem o fato gerador do IPI, a saber:

Art. 46. O imposto, de competência da União, sobre produtos industrializados tem como fato gerador;
II – a sua saída dos estabelecimentos a que se refere o parágrafo único do artigo 51;

Art. 51. Contribuinte do imposto é;
Parágrafo único. Para os efeitos deste imposto, considera-se contribuinte autônomo qualquer estabelecimento de importador, industrial, comerciante ou arrematante.

Na verdade, trata-se de um equívoco muito comum e que normalmente é causado pela leitura superficial de tais dispositivos. Por essa razão, alguns defendem que a conjugação desses dispositivos permitiria a equiparação de qualquer empresa à contribuinte, mesmo que não tenha afinidade com o fato gerador do IPI. Mas não é verdade.

A leitura admitida do artigo 46 é que ali estão insertos os critérios temporais da hipótese de incidência, mas não o fato gerador em si[iii].

Leia-se com uma lupa: “a sua saída dos estabelecimentos” nada mais é que o critério (ou aspecto) temporal da hipótese de incidência. A esse respeito, já nos ensinava o incomparável mestre Geraldo Ataliba[iv]:

“ (…) sair = a saída não é a materialidade da hipótese de incidência. É meramente seu aspecto temporal. A saída é o momento qualificado pela lei como de consumação do processo concreto que redunda na obtenção (produção) do produto. É erro lógico e conceitual grave supor que “saída” seja hipótese de incidência de qualquer tributo. É mero aspecto temporal, quer do ICM (v. Souto Maior Borges, RDA 103), quer do IPI; (…)”

Nesse mesmo sentido leciona o professor Kiyoshi Harada[1], rechaçando a ideia que a saída do produto por si só seria o fato gerador do IPI, in verbis:

“Ao contrário do que se depreende da leitura ocular do art. 46, II do CTN, a saída do produto industrializado não configura fato gerador do IPI, expressando apenas o seu aspecto temporal, isto é, quando se tem por ocorrido o fato gerador do IPI. Sem o aspecto temporal do fato gerador a tributação seria impossível, pois para aplicação da legislação tributária, conforme o princípio tempus regit factum, necessário um critério seguro definindo o momento em que nasce a obrigação tributária.”

Princípio da autonomia
Por sua vez, o parágrafo único do artigo 51 em comento tem uma única finalidade, que é estabelecer o “Princípio da Autonomia dos Estabelecimentos entre os contribuintes eleitos pelo artigo 51 do CTN[v]” — o importador (art. 51, I), o industrial (art. 51, II), o comerciante que vende ao industrial (art. 51, III) e o arrematante (art. 51, IV).

Por isso a expressão no parágrafo único “Para os efeitos deste imposto, considera-se contribuinte autônomo qualquer estabelecimento…”, que visa consagrar o aludido princípio, assim como ocorre no ICMS.

O Código Tributário Nacional deixou a critério do ente político fixar ou não a autonomia dos estabelecimentos para fins fiscais, conforme se extrai o inciso II do artigo 127 desse diploma legal, a saber:

Art. 127. Na falta de eleição, pelo contribuinte ou responsável, de domicílio tributário, na forma da legislação aplicável, considera-se como tal:
I – quanto às pessoas naturais, a sua residência habitual, ou, sendo esta incerta ou desconhecida, o centro habitual de sua atividade;
II – quanto às pessoas jurídicas de direito privado ou às firmas individuais, o lugar da sua sede, ou, em relação aos atos ou fatos que derem origem à obrigação, o de cada estabelecimento;

Sobre o tema, a ministra Eliana Calmon, em voto exarado no Recurso Especial 1.128.139, sintetizou a matéria, cabendo aqui transcrever o esclarecedor voto:

“Sem dúvida, o sistema tributário nacional comporta a existência do princípio da autonomia dos estabelecimentos para fins tributários, sendo estes considerados unidades autônomas e independentes na relações jurídico-tributárias travadas com a Administração fiscal. Isto por imperativo do princípio da não-cumulatividade e da própria estrutura federativa do ICMS, na qual os Estados e o Distrito Federal têm competência para legislar e arrecadar este tributo. (…).”

Com igual maestria, o doutrinador José Eduardo Soares de Melo[vi] define o aludido princípio e demonstra sua opção pelo legislador quando tratamos do IPI, conforme magistério:

“As pessoas jurídicas de Direito Privado ou as firmas individuais terão considerado como domicílio o lugar de sua sede, ou, em relação aos atos ou fatos que derem origem à obrigação, o de cada estabelecimento (inciso II do art. 127 do CTN). Este critério deve ser aplicado de conformidade com as diferentes espécies tributárias, pois se o imposto de renda é lançado tendo em vista a sede da empresa, os direitos/obrigações afetos ao ICMS/IPI têm que considerar a autonomia de cada estabelecimento para a apuração do quantum tributário (em face da aplicação do princípio constitucional da não-cumulatividade), muito embora a empresa seja considerada em sua integralidade, para o fim de responder pelo débito tributário.”

Ademais, não é possível o intérprete fazer uma leitura isolada do parágrafo único do artigo 51 do CTN, defendendo que ali estão previstos os contribuintes a que alude o artigo 46, II.

Pensar dessa forma desafia a Lei Complementar 95 de 1998. Todo parágrafo único é uma subdivisão do assunto estabelecido no caput da norma, conforme previsto na citada Lei Complementar, a saber:

Art. 11. As disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e ordem lógica, observadas, para esse propósito, as seguintes normas: (…)
III – para a obtenção de ordem lógica:
a) reunir sob as categorias de agregação – subseção, seção, capítulo, título e livro – apenas as disposições relacionadas com o objeto da lei;
b) restringir o conteúdo de cada artigo da lei a um único assunto ou princípio;
c) expressar por meio dos parágrafos os aspectos complementares à norma enunciada no caput do artigo e as exceções à regra por este estabelecida;
d) promover as discriminações e enumerações por meio dos incisos, alíneas e itens.

Pela técnica de interpretação legislativa, podemos concluir que o artigo 51 enumera quais são os contribuintes do IPI, sendo que seu parágrafo único estabelece que esses mesmos contribuintes deverão ser considerados como uma unidade autônima para cada estabelecimento seu.

Nesse sentido, oportuno é trazer a lição do professor da Escola de Magistratura do Rio de Janeiro (Emerj) Sylvio Motta[vii], que assim leciona:

“(…) convém entender como se deve estudar um artigo de uma lei. O artigo é a menor porção de uma lei que ainda guarda as suas características. Sendo assim, a forma correta de interpretar um artigo é concêntrica e não linear, ou seja, deve-se entender que o centro orbital de um artigo é o seu caput, tudo o circunstancia: os parágrafos, incisos, alíneas e itens que porventura o integram. Assim, a interpretação exige certo grau de abstração do intérprete para que, em uma visão espacial mais acurada, compreenda que os parágrafos, por exemplo, são subdivisões do assunto do caput, enquanto os incisos são exemplificações do assunto do parágrafo ou do próprio caput; já as alíneas são enumerações (quase sempre taxativas) do conteúdo dos parágrafos; e, finalmente, os itens são enumerações do assunto que está na alínea.”

Por tudo isso, a interpretação autorizada do parágrafo único do artigo 51 deve ser feito de acordo com seu caput, que vem definir os contribuintes do IPI. Nesse sentido, a leitura lógica é a de que se considera contribuinte:

* O importador, considerando autonomamente qualquer estabelecimento seu (matriz ou filial), para quando efetuar o ingresso de mercadorias estrangeiras no País (Art. 46, I c/c Art. 51, I e parágrafo único);

* O industrial ou o comerciante que vende ao industrial, considerando autonomamente qualquer estabelecimento seu (matriz ou filial), para quando efetuar a venda de produtos que industrializou (Art. 46, II c/c Art. 51, II e III e parágrafo único);

* O arrematante, considerando autonomamente qualquer estabelecimento seu (matriz ou filial), para quando arrematar produtos industrializados (Art. 46, III c/c Art. 51, VI e parágrafo único);

Com base na presente análise, podemos chegar à conclusão que o STJ agiu acertadamente ao manter o entendimento anterior, no sentido de reconhecer a ilegalidade do IPI incidente na saída do produto importado que não tenha sofrido qualquer nova industrialização.


[1] Industrialização por encomenda: IPI/ICMS ou ISS?

[i] REsp 841.269

[ii] REsp 1385952

[iii] Valemo-nos aqui da regra-matriz de incidência tributária, que têm em sua estrutura os elementos antecedente e consequente, cabendo-lhes respectivamente os critérios: material, temporal e espacial, e, o pessoal e o quantitativo, de acordo com a classificação dada pelo renomado jurista Paulo de Barros Carvalho: “A norma tributária, em sentido estrito, reiteramos, é a que define a incidência fiscal. Sua construção é obra do cientista do Direito e se apresenta, de final, com a compostura própria dos juízos hipotético-condicionais. Haverá uma hipótese, suposto ou antecedente, a que se conjuga um mandamento, uma consequência ou estatuição.” CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 14ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

[iv] Hipótese de Incidência do IPI in Revista de Direito Tributário n.º 37, p.4.

[v] Art. 51. Contribuinte do imposto é:
I – o importador ou quem a lei a ele equiparar;
II – o industrial ou quem a lei a ele equiparar;
III – o comerciante de produtos sujeitos ao imposto, que os forneça aos contribuintes definidos no inciso anterior;
IV – o arrematante de produtos apreendidos ou abandonados, levados a leilão.

[vi] In Curso de Direito Tributário. 7ª ed. São Paulo: Dialética, 2007, p. 248
[vii] http://www.conjur.com.br/2009-jun-12/interpretar-lei-imprescindivel-compreender-ela-foi-escrita, acessado em 01/05/2013

Fonte: Conjur – Por: Rogério David Carneiro é advogado e sócio diretor do escritório David & Athayde Advogados. Especialista em Direito Tributário pela PUC-RJ e em Direito Privado Pela UFF.